DE TANTO BATER MEU CORAÇÃO PAROU
Cada
nova sensação, cada novo acontecimento nos surge como uma lufada de ar
fresco num cotidiano permeado pelos mesmos odores que aprendemos a
conhecer de cor. O cheiro da rotina. O cheiro do medo. O cheiro da
certeza. Mas, subitamente, e por uns breves momentos, reaprendemos a
respirar. O peito se abre. Os pulmões se enchem de ar e de esperança. E o
coração, romantizado até à exaustão, ergue a sua batuta e define um
novo ritmo. A vida começa onde o convencional acaba. Alegria. Tristeza.
Amor. Dor. Experimentamos um pouco de tudo ao longo desta vida, ou pelo
menos, tentamos. Corações expostos sem a armadura que só a vida
constrói. A inocência da infância e da adolescência leva-nos a abrir o
peito a tudo e a todos sem pensarmos nas infecções que provocam e que só
o esquecimento ensina a sarar. Alguns batem somente para receber, como
senhores de reinos místicos e desertos. Outros vivem em permanente saldo
negativo, dando sem parar e jamais recebendo a recarga necessária à sua
sobrevivência. Sempre me perguntei por que se associa o amor ao coração
humano, em especial se considerarmos a diferença entre aquilo que pulsa
dentro de nós e as suas desencantadas representações nos cantos das
páginas que guardam os nossos segredos. Se amamos com o corpo todo, por
que só o coração ganha o mérito? Mesmo destruído, se impõe como o
vencedor. Talvez por que seja o único órgão sem o qual não podemos
funcionar? Talvez. Ou talvez por que não passa de um emaranhado de
sangue, nervos e convulsões, como tudo o que é autêntico? Provavelmente.
Tudo em nós ama e só depois de mortos é que temos autorização para
deixar de o fazer... somos seres orgânicos a quem foi concedida a bênção
de pensar. Todo o resto é química, seja lá o que isso for. Por que
sorrimos? Por que choramos? Por que contemplamos a nossa própria
mortalidade? Por que amamos? Tudo é inexplicável e, talvez por isso, tão
belo... Procuramos significados onde não existem. Exigimos que nos
apresentem um roteiro que possamos seguir indiscutivelmente. Voamos sem
asas. Sonhamos sem dormir. Amamos sem sentir. As fórmulas científicas de
nada servem. Aquilo que sentimos ultrapassa a nossa vontade. Vivemos
presos. Alguns, prisioneiros dos seus pensamentos, outros dos seus
sentimentos. Sofrimento inglório, impossível de combater.De tanto bater o
meu coração parou. Bateu vezes demais e eu nunca deixei de lhe exigir
mais e mais. Cada paixão, cada expectativa, cada sonho o levava ao
limite de batidas. Depois, a realidade batia à porta e me obrigava a
tropeçar e, por uns instantes, era-lhe permitido descanso. Até que certo
dia ele se apoderou do meu calendário, e, desde então, uma sobrecarga
de emoções obrigou-o a parar. As coisas boas misturaram-se com as más e
tudo deixou de fazer sentido. Ainda revejo e sinto o último batimento.
Depois nada... E a brisa transformou os dias em semanas que cresceram
para meses. Nada... Os elogios tinham gosto de areia. No peito nada se
mexia. Os beijos faziam comichão no céu da boca. No peito nada se mexia.
Os golpes, por mais dolorosos e profundos que fossem, eram mastigados
como chicletes e deitados fora antes de perderem o sabor. Mas no peito
tudo permanecia no mais profundo silêncio. Até que surgiu a recarga
elétrica que parecia fraca demais para reanimar fosse o que fosse. De
repente, gritaram-se palavras de amor. O corpo agitou-se na sua infinita
dança de sedução. Ambos exigiram que aquele saco de sangue amorfo e
ridículo renascesse. Uma batida de cada vez. O compasso de uma música
sem fim à vista. E assim, o que jazia morto se reergueu. Acordou, olhou
em volta, e apesar de não ter gostado do que viu, insistiu em continuar a
sua música. Mas, como tudo o que regressa, voltou diferente do que
quando partiu. Bate agora frágil, meio vazio e desconfiado. Mas bate... e
segue batendo. Numa fração de segundo que durou uma vida, o meu coração
parou. Até que se lembrou de que nasceu para bater e decidiu que só
pararia quando não houvesse nada no mundo pelo qual valesse a pena
cantar a sua melodia. Ainda há muitas conquistas e mágoas por comandar.
Quando já nada mais houver para sentir, então aí terá chegado a hora do
descanso merecido e duradouro. Até lá... apenas viver. Batimentos
ritmados... pulsações descompassadas... melodias excêntricas e
incertas... até o fim... até o último acorde vibrar... até a música
deixar de ter história e as notas perderem o som...
Um comentário:
Este teu texto está fantástico...
Beijinho, Renata!
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